sexta-feira, 24 de julho de 2009

Meio Dia

Era meio dia quando o despertador tocou. Sim meio dia, tal como ontem desde há tanto tempo que se perdeu na contagem. Podiam ser três da tarde, tal como há meia hora, tal como há séculos. É assim que esta história começa. No meio dia algures de um ano qualquer, que se perdeu na sua memória.

Olhou para as suas mãos vincadas ainda dormentes e reparou que há muito que não dava por elas, nas mãos que gravavam a sua alma. Era escritor desde há algum tempo, não sabia ao certo o dia em que borrou a primeira folha de papel, mas tinha a certeza que a partir desse momento a sua vida mudou.

Entrou num mundo que nunca havia estado, no mundo transtornado, abstracto de balões de ar quente, misteriosas vibrações da arpa que acompanhavam o movimento do seu corpo, dos candelabros em cristal no seu palácio, visionando a perfeição das formas e explosões coloridas do jardim, tapete do seu quarto.Nada fazia para além da permanente criação, da contemplação do silêncio que o guiava até a si mesmo. Mergulhou nas lagoas onde habitavam deuses efémeros homens peixe, árvores falantes, flores serpente, explorou todo o seu subconsciente e por momentos julgou conhecer o iceberg por completo.Ás vezes podia estar perante a multidão, mas nada, absolutamente nada perturbava as suas viagens de explorador dos novos mundos. Encantou-se nas suas retiradas longínquas, no seu oceano interior, nas selvas de amazónia em que era predador. Amava a lua, a noite, a madrugada que acompanhava quase sempre o seu papel.

Sonhar era tudo e de sonhos ele vivia. Sempre fora lunático, um espírito livre de contos de fadas, crente em espíritos, forças ocultas e no poder da mente. Desde que se lembra de ser gente sempre se conheceu assim, mas a escrita afundou-o de tal modo em si que ele simplesmente esqueceu de viver o presente. A realidade nossa era demasiado enfadonha, demasiado decepcionante. E porquê viver neste mundo quando podia planar sobre a imaginação que o levava aos castelos de prata, aos ventos do oriente, aos trilhos de amoras?

Assim passou-se o tempo sem dar conta, passaram-se dias, meses, anos e foi quando nesse meio dia em que o despertador tocou, foi aí que reflectiu sobre as suas mãos vincadas, sobre céu de chuva escura, sobre o seu quarto imóvel em que o tempo passou. Nesse dia desabou o peso do mundo sobre as suas costas, sobre os seus ombros, tornou-se corcunda de pernas desfeitas e calos nos pés. Nesse dia carregado de angústia viu a sua imagem de Homem decomposto, cadavérico, andrajoso, tinha perdido os sentidos para este mundo.

Tentou olhar aqueles com quem se cruzava, com homens de carne e osso e não as figuras bizarras que via neles depois de tanto tempo, mas uma distância de anos de luz separava-o dos outros. Tentou encontra-se, humanizar-se entre as gentes estranhas com quem se debatia, mas o seu desencanto corria em crescendo, ascendendo ao cúmulo da repugnância de si como ser real, como ser que age, como ser que vive. A corrente contra o seu mundo era demasiado forte para não ceder e com o seu esforço imenso só caía em frustração. Esta luta foram outros tantos anos, tantos quantos aqueles em que não esteve cá.

Agora não se encontrava cá nem lá, estava entre os dois mundos e nesse lugar assombroso, arrepiantemente frio e distante, finalmente descobriu quem era, um homem escritor vivendo delírios, esquecendo a sua vida, alimentando o derradeiro pesadelo desta vez bem real, sentido a carne desfeita em feridas abertas onde olhava os seus membros esvaindo-se em sangue.

Agora via-se doente curvado em si como um feto na placenta, voltando a nascer, vendo pela primeira vez a Terra. Mas esse sangue escorrendo pelo seu corpo era ainda sinal de vida, de uma vida atormentada, mas ainda assim vida. Lutou desenfreadamente contra o desgosto, contra a culpa da sua auto mutilação, contra os estados de animo incontroláveis que o acordavam em pesadelos, em lençóis de lágrimas em que se afogava.

Lutou, caíu, morreu! E morreu de cama, num quarto repleto de monstros e mil olhos julgadores da sua condição.

Morreu!

E nada melhor podia ter acontecido senão a sua morte porque dele nasceu outro, bem diferente, bem feliz por perceber que o maior dos perigos espreita em nós, seres estranhos, onde encontramos um universo de ilusão.

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